Os apaixonados por música e pelos discos
(e reforce-se a palavra a apaixonados, e não os meros ouvintes de música) podem
dividir-se em duas categorias. De um lado aqueles que tomam uma posição mais
passiva perante essa sua paixão, idolatrando-a, respirando-a, sorvendo-a,
vivendo em torno dela, mas limitando-a à busca incessante daquele disco,
daquela peça que falta na colecção eternamente inacabada, tomando a posição de
ouvinte, coleccionador, melómano...o que lhe queiram chamar! Do outro lado
temos aqueles que, para além de partilharem muitas das características dos
atrás descritos, tomam uma posição mais activa perante a música, quer seja
enquanto músicos, quer seja enquanto investigadores, estudiosos, jornalistas,
fotógrafos, técnicos, enfim, o que realmente importa é sentir que participamos
da paixão, que nos alimentamos dela e que ela alimenta-se de nós, que fazemos
parte de algo, que damos um pouco de nós em prol daquilo em que acreditamos e
que corre nas nossas veias, que faz parte do nosso código genético. É nesse
perfil que se encaixa o José Carlos Santos, um inveterado apaixonado pela
música que, desde cedo, procurou participar activamente dessa sua paixão. Fá-lo
como jornalista e fotógrafo em diversas publicações nacionais e internacionais
ligadas ao metal e a sonoridades mais extremas e alternativas, actividade essa
que, aos 34 anos de idade, lhe confere uma excepcional amplitude de pensamento
e conhecimento sobre música, uma mente invulgarmente aberta e lhe permitiu
contactar com realidades e pessoas tão distintas que lhe proporcionaram muitas
histórias para contar e ensinamentos, curiosidades e opiniões para partilhar. A
exemplo do que temos feito com outros entrevistados, damos hoje a conhecer a
faceta de coleccionador do José Carlos, sendo que está guardada uma segunda
parte desta entrevista que explora o âmago do jornalista, do fotógrafo, do
crítico e, acima de tudo, do fã. Enjoy!
Nome: José Carlos Santos
Idade: 34
Coleccionador há: 23 anos
Coração de: Muito sinceramente? De tudo. Desde que
comecei a ouvir música que decidi, meio implicitamente, que não valia a
pena estabelecer limites a mim próprio. Se gosto, gosto, e não é por
ser de um determinado género ou determinada banda ou artista que não lhe vou
dar uma oportunidade. O(s) meu(s) critério(s) de avaliação não é(são) a
“etiqueta”, e acho que isso é saudável. Permite-me não passar ao lado de um
monte de coisas boas que poderia à partida excluir. Obviamente que há
tendências mais pronunciadas – obviamente que o metal está na génese da minha
paixão pela música, e no geral, gosto de música “aventureira”, que desafia
convenções e esses tais limites, e tenho uma apetência particular pela música
mais feia e desagradável que possa existir. O que não invalida que logo a
seguir a uma escutadela nesses parâmetros não vá curtir desmesuradamente o
disco mais tradicionalão do mundo ou um singer/songwriter meloso qualquer. E
estas era suposto serem as perguntas de resposta simples e rápida...
Primeiro Disco: Manowar – ‘Kings Of Metal’ (1988)
Último Disco: Tecnicamente, é a edição limitada do
tenebroso ‘Scorn’ dos Primitive Man em vinil 180g. Tecnicamente, porque ainda
não chegou, mas vem a caminho.
Sonho todos os dias com: Com o próximo. Ainda preservo o entusiasmo
de comprar um disco novo e de o abrir e o pôr a tocar, se calhar ainda mais
agora do que nos últimos anos em que recebíamos mais discos físicos das
editoras, por isso fico à espera do próximo, seja ele qual for. Para não ser
mete-nojo e dar um exemplo concreto, estou particularmente ansioso por ter o
‘The Underground Resistance’ dos Darkthrone em formato físico. O stream online que me enviaram é giro para me
exibir e dizer que já o ando a ouvir há um mês, mas sinto-me um bocado impuro
cada vez que o ponho a tocar. Em termos de discos do passado, ando há algum
tempo a vasculhar por uma cópia do ‘Stridsyfirlysing’ dos Vondur, que tive na
mão várias vezes durante os anos 90 e não comprei por estupidez, e agora só se
encontra muito raramente a preços exorbitantes na net.
Qual o teu primeiro contacto com a música?
No inicio houve alguém que te influenciou ou foste tu próprio que
ganhaste este gosto especial de ouvir música?
Pela música, em geral, a influência mais
marcante desde muito cedo foi a do meu pai, que tem uma colecção de vinil muito
respeitável dos anos 60, que inclui pérolas de bom gosto como Beatles, Pink
Floyd ou até Hawkwind. Mesmo sem entrar grandemente na música propriamente dita
com 5 ou 6 anos, tenho muito presente a memória da convivência com tudo o que
envolve a música, do cheiro e do toque dos discos, de tentar ler as primeiras
letras e decorar títulos de músicas que não tinha sequer ouvido com atenção. Aliás,
mesmo com essa idade, até mais cedo, com 3 e 4 anos, era habitual oferecerem-me
discos infantis como prendas (o imortal ‘Jardim Jaleco’ perdura até hoje na
memória!). Com 10 ou 11 anos, lembro-me de haver gente na minha escola a ouvir
heavy metal, Iron Maiden e Metallica essencialmente, cujas capas dos discos eu
já tinha visto em lojas e tinha ficado extremamente curioso em relação ao seu
conteúdo. Fascínio visual instantâneo. Foi, no entanto, outra banda que me
proporcionou o primeiro mergulho no metal (já conto a história na pergunta
abaixo), e a partir dai segui uma espécie de caminho próprio, no sentido de
que, tirando uma excepção ou outra, nunca tive propriamente um grupo de amigos,
com os mesmos gostos que eu, com quem partilhar recomendações e descobertas.
Desde muito cedo comecei a deitar a mão às revistas que havia na altura,
portuguesas e estrangeiras (ia a Madrid com frequência, o que ajudava a
arranjar algumas publicações que não existiam em Portugal ainda, e onde
descobri também a gloriosa e saudosa loja Madrid Rock), e foi através delas,
dos anúncios, das mail orders,
do name dropping de bandas nos booklets dos discos e nas entrevistas e também
de várias coisas compradas “às cegas” porque a capa parecia interessante que
fui evoluindo nesses primeiros tempos. Isso até me ter envolvido um bocadinho
no tape trading, que
também expandiu horizontes. Sem nunca ter sido grande adepto da rádio, também
há que mencionar de forma muito especial as tardes de Sábado com o Lança-Chamas
do António Sérgio como fonte importante de influências novas. O Headbanger’s
Ball do início dos anos 90, com a Vanessa Warwick, também me expôs a várias
bandas.
E o teu primeiro disco, como foi essa
memória e o que representou na altura?
Ainda que os Iron Maiden e os Metallica
fossem as escolhas mais populares na minha escola entre os “metálicos”, como se
dizia na altura, a minha génese musical verdadeira dá-se com o ‘Kings Of Metal’
dos Manowar. Lembro-me que um colega que eu nem conhecia bem levou o disco para
a escola e enquanto se conversava sobre ele saiu-me um “emprestas-me?”
espontâneo, sem sequer pensar bem no que estava a fazer. Ele acedeu, não sei
bem como, e fiz uma cópia para cassete nesse dia. Tinha acabado de comprar o
meu primeiro walkman, um
tijolo da Akai, e não ouvi outra coisa durante meses. Nem me preocupei com
outras bandas eventualmente parecidas ou sequer com outros discos que pudesse
haver dos Manowar para além daquele – passei um Verão inteiro (o de 1989, salvo
erro) no Algarve com os fones nos ouvidos a ouvir aquela cassete
obsessivamente. Passei as letras todas, de ouvido, para um bloco onde fazia
desenhos do logotipo e do guerreiro da capa. No fim das férias, passei com os
meus pais por uma loja onde havia o disco à venda, e obriguei naturalmente o meu
pai a comprá-lo. A partir daí, foi a tal evolução natural. Poucos dias depois,
a minha avó, vendo-me a olhar para o ‘Ride The Lightning’ noutra loja durante
um passeio, perguntou-me se eu o queria, possivelmente porque me tinha visto a
ouvir música muito mais que o habitual nos últimos tempos. Nem queria
acreditar, e claro que aceitei. The
rest is history...
Ainda tens esse disco?
Não só o tenho (em CD, porque o ‘Kings Of
Metal’ trazia uma faixa-bónus nesse formato – a ‘Pleasure Slave’ – e
naturalmente achei muito melhor...), como também tenho a cassete mágica que
andei a ouvir durante meses, com o logo desenhado por mim na lombada e tudo.
Aliás, em termos de discos, eu tenho tudo o que alguma vez comprei/recebi.
Nunca seria capaz de me desfazer de nenhum. Nem dos que não gosto. Só o
admitiria numa situação extrema em que precisasse de comer e já tivesse vendido
tudo o resto cá de casa.
O modo como encaras e sentes a música
mudou muito ao longo dos tempos, especialmente tendo em conta que desenvolves a
tua actividade profissional na imprensa escrita há largos anos e
acompanhaste o emergir de muitas tendências?
Como sinto, não. Tenho a mesma excitação
infantil que sempre tive quando ouço um disco novo que me agrade, quando
descubro algum disco antigo que me tenha passado ao lado até à altura, ou
quando revisito um favorito que já não ouvia há algum tempo. Ou quando vejo uma
banda de que goste ao vivo, claro. No dia em que deixar de sentir isso, fico
preocupado, porque quer dizer que alguma parte fundamental de mim se partiu cá
dentro. Como encaro... talvez tenha mudado um pouco, sim. Não necessariamente
para melhor ou para pior, mas quando aquilo que fazemos exige que conheçamos a
maior parte das bandas em mais pormenor do que seria normal, ou até quando já
conhecemos e já conversámos com boa parte dos músicos que admiramos, a postura
é necessariamente diferente. O gajo aqui aos gritos no disco dos Amenra já não
é só um belga com um nome esquisito, é o Colin que se despiu para eu lhe tirar
fotos das tatuagens, que me esteve a falar dos filhos e com quem tenho trocado
emails com regularidade, só para dar um dos exemplos mais recentes. Não muda a
minha opinião, seja ela qual for, sobre a música em si, mas torna a ligação com
ela um pouco diferente, mais próxima. O que acho que é importante, não só para
quem trabalha efectivamente na indústria, mas até também para o fã “normal”, é
evitar ficar demasiado jaded.
Começar a descartar música só porque andamos há 15, 20 ou 30 anos a ouvir
música o dia todo e já não temos paciência para certas coisas. É verdade que
isso acontece, inevitavelmente, sob todos os aspectos, mas combater isso é
ajudar a manter uma certa vitalidade juvenil, um certo entusiasmo, que faz
muita falta. Particularmente a quem escreve sobre música. Ser cínico e “vivido”
é giro, mas só até certo ponto.
Como é que as pessoas que te rodeiam e que
conhecem esta tua paixão vêem o facto de teres tantos discos e itens
relacionados com música?
Tenho muita sorte nesse aspecto, porque
nunca encontrei qualquer tipo de oposição ou sequer estranheza por parte de
ninguém que pertença ao meu círculo mais apegado. A minha família é muito
pequena, e os meus pais e avós, de quem sempre fui muito próximo, sempre
acharam normalíssimo que eu comprasse discos com cruzes invertidas e gente
mutilada na capa, porque sempre souberam separar a temática do meu
entretenimento (que em cinema, literatura e video-jogos seguia uma linha
semelhante, até) daquilo que eu sou, felizmente. É um passo com o qual muita
gente tem dificuldade. O meu pai trouxe-me o ‘Tomb Of The Mutilated’ de uma
viagem de trabalho porque achou que aquilo tinha a minha cara, para teres uma
ideia. As pessoas que me foram conhecendo ao longo da vida já me conheceram
assim e nunca sequer questionaram o porquê do maluquinho da música ter uma divisão
em casa só para os discos. É assim e pronto.
Imaginas a tua vida sem música?
Nem a minha, nem a de ninguém. É algo que
está em todo o lado, mesmo que não demos por isso. Até o mais empedernido
tirano fundamentalista que proíba a música no seu país há-de acordar com uma
melodiazinha qualquer na cabeça, por muito que o negue. E não é sequer uma
coisa exclusivamente humana, ainda ontem li um artigo extremamente interessante
sobre a resposta emocional dos pássaros à música – consta que um grupo de cientistas,
após várias experiências, concluiu que a reacção neurológica de um bando de
pardais à música é praticamente igual à do ser humano. Como se eu não soubesse
já isso pelas reacções dos meus cães às diferentes coisas que toco quando eles
estão deitados no sofá atrás de mim.
Compras um disco e quando chegas a casa
qual é o teu ritual?
Infelizmente, compro cada vez menos discos
que envolvam a parte do “chegar a casa” – a maior parte das compras são feitas
online, e nesse caso, quando os recebo, já estou em casa, mas o entusiasmo é
semelhante. Seja a abrir o pacote dos correios ou seja, efectivamente, a chegar
a casa com um disco novo, o foco é todo para o disco. Não interessa o que eu
esteja a fazer (no primeiro caso), não interessa despir o casaco (no segundo
caso), a primeira coisa a fazer é abri-lo (com cuidado obsessivo, obviamente,
preservando quaisquer autocolantes ou coisas do género) e pô-lo a tocar com o booklet à minha frente.
Tens algum cuidado em especial que queiras
partilhar sobre limpeza e conservação dos discos?
Nenhum que qualquer pessoa que goste
minimamente dos seus discos não tenha já, suponho. Evitar armazená-los em
locais húmidos, tê-los em móveis próprios e sem estarem empilhados uns em cima
dos outros, manuseá-los como se fossem o nosso filho recém-nascido... esse
género de coisa. Nos últimos anos, também tenho passado muita coisa para .mp3
para minimizar o manuseio do objecto.
De que forma organizas e arquivas a tua
colecção?
Estritamente alfabética, separada apenas
por formato – CDs, vinil, cassetes e promos em cartão. Até atingir os 500
discos, por aí, tentei uma organização mais ou menos por género, mas há
demasiados casos dúbios, muita “polinização cruzada”, e aquilo chegou a uma
altura em que só eu é que poderia alguma vez descobrir um disco no meio da
colecção, mais por associação mental de vários factores do que propriamente por
alguma organização lógica. Hoje em dia já seria impossível fazer isso. A ordem
alfabética dá azo a casos interessantes de proximidade, já agora. Um colega meu
escocês que escreve para a Zero Tolerance fez um post sobre isso no blog dele
há uns meses que vale a pena recordar: http://punbasedname.blogspot.co.uk/2012/09/strange-bedfellows-part-1.html. Qualquer dia faço uma lista deste
género.
Quantos discos tens no total, considerando
todos os formatos físicos?
Em CD, considerando as promos, deve rondar
os 8.000. Mais umas centenas da minha colecção vergonhosamente curta de vinil (born
too late, como diz o outro, e born
too poor também) e mais umas centenas de cassetes (a
maior parte demos, mas muitas com recordações várias do tape-trading), que são as
únicas que não trouxe de casa dos meus pais para a minha casa actual. Enough is enough.
Qual é o item ou os itens que mais
destacarias da tua colecção seja por motivos afectivos, seja pelo próprio valor
comercial ou em termos de raridade?
Sou obsessivo por ter a música, mas não
necessariamente por ter múltiplas edições do mesmo disco ou por ter alguma
raridade em particular. Nunca paguei preços exorbitantes só para ter “aquela”
edição, por isso não tenho assim tanta coisa que possa constituir uma raridade
ou que valha milhões no eBay. Os discos que guardo com mais afecto são aqueles
cujas bandas têm alguma ligação pessoal comigo, ou com quem já tive o prazer de
estar pessoalmente. Ocorrem-me os discos dos Swans que o Michael Gira se deu ao
trabalho de assinar pessoalmente num dos meus encontros com o senhor (e até
mesmo a cópia do livro dele, ‘The Consumer’), a edição limitada em caixa de
madeira do ‘Adrift’ do Wino com um agradecimento e uns arabescos rabiscados a
caneta pelo próprio na noite em que me salvou de dormir numa floresta cheia de
lobos (long story), a maqueta dos Sororicide oferecida pelo Gísli himself, a edição limitada do
‘Microbarome Meetings’ dos Black Shape Of Nexus com fotos minhas ou o LP do
‘Live At Roadburn’ dos Wolves In The Throne Room cuja capa também é uma foto
minha. Alguns singles 7” do Johnny Cash que me vieram parar às
mãos improvavelmente depois do fecho de uma pequena loja americana de onde
mandava vir algum country alternativo e cujo dono acabei por conhecer e
tornar-me amigo dele à distância. Enfim, nada que valesse um milhão de dólares
num leilão, mas tudo coisas que guardo com um sentimento forte.
Alguma vez perdeste a cabeça a nível
monetário na aquisição de um disco? Qual o valor que gastaste?
De um disco, não. Já perdi a cabeça várias
vezes, em feiras de discos, em concertos (depois de ver os Trap Them pela
primeira vez, em Espanha, fui directo à banca do merch onde já estava o Ryan
ainda todo suado e ofegante, e pedi-lhe “tudo”. Mesmo, “one of
each, please”), mas sempre por comprar múltiplos items. As viagens à feira da ladra para comprar discos ao Pedro Cardoso
eram particularmente danosas para os meus limitados recursos, na altura. Mas só
por um disco, nunca cometi grandes loucuras. Estou aqui a ver o tal álbum dos
Vondur de que falei há bocado a 40€ na net e não sou capaz disso. Um dos discos
mais caros que comprei foi, estranhamente, o ‘Passage’ dos Samael. Fiz na
altura em que esse disco saiu, ali por alturas de 1996, uma longa viagem de
autocarro pela Europa, e meti na cabeça que iria comprar em cada país por onde
passasse um disco de uma banda desse país. Coisas de nerds dos discos. Na Suiça estive muito
pouco tempo, foi uma paragem de uma hora em Zurique e pouco mais, e como já
tinha os discos todos dos Celtic Frost e sabia que os Samael tinham álbum novo,
naturalmente que essa hora foi dedicada a procurar uma loja de discos para o
comprar. Achei, a 10 minutos de ter que voltar para o autocarro, e lá estava o
‘Passage’ em prateleira de destaque e tudo. Custou-me 4500 escudos, o sacana do
disco.
Tens alguma banda em particular que tentas
ter, não só os álbuns oficiais, mas também singles, ep´s, maxis e bootlegs?
Algumas... Swans, Neurosis, várias outras
tanto mais dos anos 80 como mais modernas. Tenho muita coisa. Mas vivo bem se
não tiver as gravações de todos os concertos que os Swans deram em caves
americanas nos anos 80, diga-se.
Em média, quantos discos compras por mês?
Há uns 15 anos atrás, a resposta seria na
ordem dos 10 discos, no mínimo. Bons tempos, em que tinha começado a trabalhar,
não tinha encargos nenhuns e nem sequer havia uma crise económica como a que
vivemos hoje. Os discos estavam para o meu orçamento mensal como o ministério
da defesa está para o orçamento de estado dos EUA. Actualmente, com menos
dinheiro para gastar em mais coisas, e como ainda por cima recebo alguns discos
“a sério” de editoras (a promo física em cartão, definitivamente, morreu) que
até compraria em condições normais, só compro 1 ou 2 no máximo. Com pena.
Onde costumas adquirir os teus discos?
Lojas online, concertos, festivais.
Qual o local mais improvável onde
adquiriste discos?
Na secção de comida para animais do Jumbo
de Alfragide. I
fuckin’ kid you not. Nessa altura (algures por 1989/1990),
esses primeiros hipermercados a aparecer ainda tinham uma secção de discos
razoavelzinha. Encontrei algumas pérolas, até porque era um miúdo de 11 ou 12
anos a começar a ouvir música e ainda não tinha grande ideia de onde procurar
mais, tirando uma loja ou outra que conhecia ou nas tais idas a Madrid, por
isso enquanto os meus pais faziam compras eu ia ver discos. Andava um dia à
procura de discos antigos dos Manowar, e não encontrei nenhum... até passar
pela dita secção, onde estava, nitidamente à minha espera, o ‘Into Glory Ride’,
de longe o meu disco favorito deles hoje em dia. Há claramente uma piada à
espera de ser feita nesta situação, mas não vou ser eu a fazê-la...
A(s) melhor (es) aquisição (ões) de
sempre, aquele dia glorioso em que voltamos para casa ainda a nos beliscar se
realmente aconteceu?
Essa do ‘Into Glory Ride’ foi altamente
gloriosa, mas já descobri um LP do ‘Powerslave’ num caixote de discos
maioritariamente da Amália e do Trio Odemira, por 1€, na Feira do Livro, e já
voltei para casa com 23 discos (vinte-e-três) de uma feira do disco em Faro, algures
nos anos 90, tudo coisas boas e de 1.000 escudos para baixo.
Qual é o teu Top dos melhores discos de
sempre, aqueles que independentemente do género aconselhas todos a ouvir antes
de morrermos pelo menos uma vez?
Isso é uma pergunta tenebrosa que não se
deve fazer a ninguém que tenha mais de 20 discos em casa. Eu tenho dificuldades
para restringir as minhas listas de melhores discos a menos de 100 todos os
anos. Resistindo, no entanto, ao impulso de te chamar um nome feio, dou-te os
20 primeiros que me vierem à cabeça como essenciais nos próximos 20 segundos,
sem ordem nem grande critério, porque senão esta entrevista nem em 2015 seria
publicada:
Neurosis
– ‘Through Silver In Blood’
Swans –
‘Soundtracks For The Blind’
Tom
Waits – ‘Mule Variations’
Emperor
– ‘Anthems To The Welkin At Dusk’
Leonard
Cohen – ‘Songs Of Love And Hate’
In The
Woods... – ‘Omnio’
Diamanda
Galás – ‘Malediction And Prayer’
Darkthrone
– ‘Under A Funeral Moon’
Saint
Vitus – ‘Born Too Late’
Kiss It
Goodbye – ‘She Loves Me, She Loves Me Not’
Iron
Maiden – ‘Seventh Son Of A Seventh Son’
Melvins
– ‘Houdini’
Godflesh
– ‘Streetcleaner’
Pentagram
– ‘Pentagram’ / ‘Relentless’
William
Elliott Whitmore – ‘Hymns For The Hopeless’
Johnny
Cash – ‘American Recordings’
Townes
Van Zandt – ‘For The Sake Of The Song’
Nick Cave And
The Bad Seeds – ‘The Boatman’s Call’
16 –
‘Drop Out’
Antony And The Johnsons – ‘Antony And The Johnsons’
Vinil, CD ou Cassete?
Gosto de todos. Todos proporcionam uma
experiência diferente. Não vejo os formatos como uma “competição”, vejo-os como
complementos.
Vinil preto ou colorido?
Depende do disco...
Picture Disc ou 180gramas?
180g
Gatefold ou capa Simples?
Indiferente. Capa bonita + música boa, e
fico bem.
Formato 12” , 10” ou 7”?
Again, gosto de todos, desde que o disco em questão seja bom e
faça sentido no formato em que foi lançado.
Jewelcase ou Digipack?
Digipack, porque geralmente dá a sensação
de ser mais uma peça “única” do que a caixa universal de plástico. Mas não é
grande factor de decisão para coisa nenhuma.
Primeira prensagem ou reedição luxuosa?
Ambos, desde que “luxuosa” queira dizer
“demo-nos ao trabalho de fazer isto valer a pena”. São duas perspectivas
diferentes, temporalmente e em termos de aproximação, à mesma peça de música, e
portanto complementares.
Lojas físicas ou Internet?
Preferia lojas físicas, mas hoje em dia,
como já referi, a internet domina largamente a minha preferência. Não posso
deixar aqui de referir as duas lojas físicas mais fascinantes que conheço – a
Music Hunter em Helsínquia e a Neseblod em Oslo. De um tipo se perder lá dentro
durante horas. Não há internet que possa competir com essas. Mas são longe!
AUDIOFILIA...
Tens o teu lado audiófilo ao nível do
HI-Fi ou apenas gostas de ouvir musica desde que soe bem sem te preocupares
muito com a busca do som ideal?
Acho que quem ouve tanta música durante
tanto tempo acaba sempre por desenvolver alguns standards mínimos de qualidade de som, seja na
produção dos discos (e aqui, qualidade de som pode significar muitas coisas, o
‘Under A Funeral Moon’ para mim tem uma produção perfeita para o que é, mas
adiante) ou no equipamento que usamos. Mas não sou, de todo, um audiófilo no
verdadeiro sentido do termo. Nota-se a diferença em relação a um sistema de som
como deve ser, claro, mas não me perturba nada ouvir .mp3 no computador, com
umas boas colunas e uma boa placa de som.
Há algum instrumento que te cative mais
quando estás a ouvir musica?
Há, mas varia de banda/artista para
banda/artista, dependendo das suas características. Não há um que me apele mais
que os outros, universalmente. Por exemplo, com os Hooded Menace ou com os Trap
Them, é o sonzaço de guitarra do Lasse Pyykkö e do Brian Izzi, respectivamente,
que me cativa mais. Com os Planes Mistaken For Stars é o vozeirão do Gared
O’Donnell. Com os OM, é o baixo do Cisneros que parte tudo. Por aí fora.
Tocas ou gostarias de aprender a tocar
algum instrumento?
Vou citar a resposta do meu grande amigo e
colega Nelson Santos: toco air guitar e air
drums. E mal!
Primeiro Concerto?
Metallica + The Cult + Suicidal
Tendencies, Estádio José de Alvalade, 16/06/1993
Melhor concerto de sempre?
Mais uma pergunta daquelas que não se faz,
mas o ponto de ebulição atingido pelos Neurosis, em Londres (KOKO), em finais
de 2010, dificilmente será alcançado.
Concerto de sonho?
Os In The Woods... reunidos de novo, a
tocar o ‘Omnio’ na íntegra. Ou um concerto qualquer do Tom Waits, que é um
daqueles nomes que ainda me falta riscar da lista dos must-see-before-I-die.
Que banda gostarias de ver ao vivo e que
já não vai ser possível?
Os Iron Monkey, os Ramones, o Johnny Cash
e o Townes Van Zandt. E sem ser música (mas tem a ver), o Bill Hicks. E, apesar
de o ter visto muitas vezes, vou sempre ter saudades de testemunhar ao vivo o
Peter Steele a borrifar-se para o público.
Como jornalista, certamente já te
aconteceu fazer a cobertura de concertos que musicalmente nada te dizem. É
fácil separar a razão do coração?
Já aconteceu, claro, mas não acho que seja
benéfico separar totalmente a razão do coração. Acho que uma boa crítica – e
aqui não estou só a falar de concertos, mas também em críticas a discos ou a
qualquer outro output musical - tem que ser uma mistura
saudável das duas coisas. Se se retirar totalmente um dos factores, ou se fica
com um relato estéril e meramente factual, sem o “fogo” que a música deve
atear, ou se fica com um rant apaixonado e vazio de
objectividade de um fã, sem a responsabilidade crítica que uma publicação
escrita exige. Há quem defenda os dois extremos, mas o que sempre me regeu
enquanto pessoa-que-escreve-sobre-música foi a responsabilidade de manter um
equilíbrio saudável.
Explicando isto melhor: muitas vezes
acontece que, quando somos “atacados” por alguma opinião que tomamos ao
escrever e ao criticar um disco ou um concerto, alguém nos tenta “defender”
dizendo que uma crítica é apenas uma opinião pessoal. Isso, para mim, é uma
desvalorização ainda mais insultuosa do que o gajo que me diz que sou uma besta
porque não dei 9 a um disco que ele gosta. Uma crítica
publicada numa revista impressa não é uma verdade absoluta, claro, mas não pode
ser, para mim, apenas uma opinião pessoal. Para isso existem os blogues
pessoais e outras coisas do género. Acho que quem tem a responsabilidade de
escrever numa publicação impressa tem que ter noção dessa responsabilidade e da
influência que tem nas pessoas que o vão ler. Tem que ter uma opinião
contextualizada com a revista onde está a ser publicado, com o público para
quem está a escrever, e ciente do bigger
picture daquilo sobre o qual
está a opinar. Mas, e esta é que é a parte importante, sem se anular. Sem
deixar de ter a sua própria voz, a sua própria personalidade, e confiança nos
seus próprios gostos, no seu background,
nos seus alicerces musicais e na sua capacidade de crítica. Sendo consistente e
coerente ao longo do tempo, aplicando os critérios correctos, e acima de tudo
tendo uma mente aberta, aceitando à partida todos os géneros musicais e todas
as bandas e artistas sem nenhuma ideia pré-formada, não acho que haja problema
nenhum em manter o tal coração na escrita. Toda a gente tem preferências e
tendências, e quem escreve sobre música também as pode e deve ter, o que não
pode ter é limites, ódios de estimação ou palas nos olhos.
Durante as tuas odisseias na cobertura de
eventos por esse mundo fora, certamente já terás vivido alguns momentos
hilariantes. Há algum (ou alguns) que jamais esquecerás?
Recentemente recordei alguns em maior
detalhe na rubrica semanal Taking
the long way home que fui
gentilmente convidado a escrever no blogue da Amplificasom (http://amplificasom.com/blog/), que basta vasculhar um bocadinho para
encontrar, por isso vou só deixar alguns lampejos breves de coisas
bizarras/amalucadas/curiosas que me têm acontecido. Como por exemplo...
sobreviver com a máquina fotográfica intacta a um concerto dos Municipal Waste,
só para deixar cair a objectiva (carinha, diga-se) no chão enquanto guardava o
equipamento cá fora. Sentar-me num banco de jardim em Oulu depois do último
concerto de sempre dos Sentenced para fazer tempo para o comboio para
Helsínquia daí a 2 horas e aperceber-me que o jardim em frente ao banco é o spot preferido de urinação das meninas da
universidade local que saem a noite e não reparam que está um marmanjo
estrangeiro ali sentado àquela hora. Fazer uma entrevista de 20 minutos, em
pessoa, com o Michael Amott, a um metro dele, e ele não olhar para mim uma
única vez. Contar 48 Turbojugends diferentes em blusões presentes num concerto
dos Turbonegro em Munique no auge da sua popularidade. Ter o Guy Pinhas (dos
Goatsnake/The Obsessed/Thorr’s Hammer) a dar conversa à moça do bar dos cocktails para nos enfrascarmos com estilo,
porque cerveja é para pobrezinhos. Assistir ao Portugal – Inglaterra do Mundial
de 2006 com toda a road crew dos Venom, 100% britânica, e ganhar. E
não resistir a festejar à frente deles. Ver o Nocturno Culto em palco com os
Triptykon e precisar de uma folhinha de cábula para cantar a Dethroned Emperor.
Ver o Abbath e o Demonaz a tirarem fotos um ao outro com o telemóvel na
esplanada de um bar à beira-rio, em poses totalmente invisible oranges. Fazer uma
entrevista de 45 minutos com o Grutle e com o Ivar dos Enslaved dentro de uma
carrinha às escuras (a luz de presença estava fundida) porque era o único sítio
silencioso nas proximidades. Ser convidado pelos Black Sun a cantar uma cover de AC/DC em palco com eles,
recusar educadamente, mas depois embebedar-me e fazê-lo na mesma. Chegar a uma listening session dos Children Of Bodom em Helsínquia e
o guitarrista Roope Latvala já estar caído de bêbado à entrada para o
restaurante reservado para o efeito. E no fim ir para uma sauna com a banda e
todos os outros jornalistas. Também para uma listening
session, desta vez dos Soilwork, entrar nos escritórios da Nuclear Blast em
Estugarda e ver a cara de pânico do Tuomas Holopainen (tinha havido um evento
promocional dos Nightwish nos dias anteriores) que estava sentado no bar a
beber um leitinho perante a horda de jornalistas metaleiros que invadia a sala.
Fugiu, literalmente, pela porta das traseiras. Ver um concerto dos Dwarves
durar 20 minutos com porrada da grossa pelo meio entre banda e público. A lista
é infindável...
Tens por hábito comprar livros, revistas
ou fanzines de música? Qual a tua publicação favorita?
Sempre tive. Em termos de revistas, desde
os tempos da Melody Maker (onde li pela primeira vez o grande Jonathan Selzer,
uma das maiores influências musicais, e não só, da minha vida, e senhor a quem
devo muito), da Kerrang que ainda valia a pena e até da Rock Brigade brasileira
ou da Hard Rock e da Hard’n’Heavy francesas, passando por todas as habituais
até às que ainda mantenho hoje. É horrível dizer que as minhas favoritas são a
LOUD! e a Terrorizer? É que sempre foram, mesmo antes de passar a fazer parte
do staff das mesmas – tenho os números todos
das duas, por isso tenho alguma moral para isso. Gosto muito da Rock-a-Rolla
britânica também... mas nessa também sou suspeito! Daquelas com as quais não
colaboro, adoro a Decibel, a Uncut e a Zero Tolerance. No que diz respeito a
livros, sempre li freneticamente, por isso foi natural ir adquirindo livros
ligados à música de que gosto, seja de forma mais directa (coisas como o
Swedish Death Metal, o Only Death Is Real, o Lords Of Chaos ou a brilhante
série anual Da Capo Best Music Writing) ou menos directa (o The Consumer do
Michael Gira, os livros do Nick Cave, de entre os quais destaco o genial The
Death Of Bunny Munro, o The Peacock Manifesto do Stuart David, enfim, livros
escritos por músicos que não são necessariamente sobre música).
O que lês neste momento e o que
aconselhas?
Estou a ler algumas obras em simultâneo
que aconselho vivamente – o The Sisters Brothers do Patrick deWitt, que tem um
ambiente muito Deadwood-esco (para quem gostou da série, é obrigatório), e um
compêndio bastante divertido chamado 75 Worst Ways To Die, que comprei na gift shop de uma exposição impressionante que
visitei em Londres, na Wellcome Collection, chamada Death: A Self-Portrait.
Também estou a revisitar o arrepiante Heart Of Darkness do Joseph Conrad, que
li há muito tempo quando ainda era muito novo, e que tenho a sensação que estou
a entender muito melhor agora da segunda vez.
To be continued...
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