sexta-feira, outubro 03, 2014

Vale a pena reler...entrevista com José Carlos Santos: parte II

Entrevistas realizadas no parque de estacionamento de um centro comercial, uma conversa perdida num ficheiro vazio, músicos mal-humorados, bêbados e alterados, grandes amizades, boas e más recordações e, acima de tudo, uma enorme paixão que une tudo isto: o jornalismo musical! Eis a segunda parte da conversa com José Carlos Santos, aqui abrindo espaço ao seu lado enquanto profissional nos obscuros, hilariantes e apaixonantes recantos da indústria musical, proporcionando-nos uns valentes e prazeirosos momentos de excelente leitura e partilha. 

com Justin Broadrick ( Godflesh)


Escreves para diversas revistas estrangeiras de grande projecção e influência. Quais as grandes diferenças que assinalas entre mercados como a Alemanha ou o Reino Unido e o nosso país? 
O tamanho. O funcionamento das coisas é em tudo semelhante, a dedicação e o talento das pessoas é equivalente em todos os países para cujas revistas já trabalhei. Mas nesses países o mercado é de uma dimensão que não tem nada a ver com a nossa. Em particular nas revistas inglesas (e americanas, claro, mas conheço melhor por dentro a realidade britânica), que pelo idioma “universal” em que são escritas até lhes permite serem lidas em todo o mundo, a visibilidade que têm é brutal. Em Inglaterra, num país onde já existe a Terrorizer, a Metal Hammer, a Kerrang, a Zero Tolerance, a Rock-a-Rolla e mais um monte de outras, fora as “importadas” americanas, uma antiga directora da Terrorizer pode dar-se ao luxo de fundar uma revista nova meia dúzia de meses depois de lá ter saído – a Iron Fist – dedicada essencialmente ao heavy metal mais tradicional, e há espaço e público para isso. Em Portugal, uma Iron Fist venderia 500 cópias, com boa vontade, mesmo sem qualquer competição. Vivemos num sítio pequenino, e dentro desse sítio pequenino ainda somos muito poucos a gostar disto do metal e do rock. E desses poucos, ainda há menos que mantenham os hábitos antigos em relação aos formatos físicos. Contra isso, não há muito a fazer. 

Para além das diferenças óbvias ao nível das escala, sentes um outro nível de profissionalismo e apoio logístico, financeiro, etc…? 
Não. Como disse, o profissionalismo e a dedicação são exactamente os mesmos, na minha experiência – e já colaborei com revistas inglesas, alemãs, canadianas e americanas. Acho que ninguém consegue fazer nada neste nosso mundo muito particular se não for profissional, dedicado e talentoso. Em termos de apoio logístico e financeiro, mesmo nos mercados maiores que o nosso, a proporção em relação ao custo de vida é semelhante – o metal é normalmente o parente pobre em todo o lado. Ninguém é rico nesta indústria em particular, nem ninguém tem benesses extraordinárias quer escreva para uma revista inglesa quer escreva para uma revista portuguesa. Sou eu que pago os meus bilhetes de avião quase todos, a menos que haja alguma editora discográfica por trás da iniciativa em questão, por exemplo. O que fazemos é por carolice, seja em que sítio for. 

Como é abraçar e gerir uma revista dedicada à música no nosso país? Para começar, requer alguma coragem e bastante carolice e paixão por aquilo que se faz, certo? 
Carolice e paixão, claramente – e não o digo a título individual apenas, digo-o referindo-me a toda a equipa que constitui a LOUD! neste momento, que tem sido inexcedível nos seus esforços e na aplicação do seu talento. Coragem... não é uma palavra de que goste muito neste contexto. Coragem têm os bombeiros que vão apagar fogos, os médicos que vão para cenários de guerra, as pessoas que se manifestam e exigem os seus direitos perante riscos sérios à sua integridade física. Convicção é uma palavra de que gosto mais. Convicção naquilo que somos capazes de fazer, carolice e paixão. Isso sim, sem dúvida.

Como jornalista e um dos cérebros de uma revista dedicada a um género musical muito específico,  o metal, como encaras o futuro desse tipo de publicações “físicas” ? 
Com um optimismo moderado, mas firme. Passamos por alturas difíceis, claro que sim, em todos os sectores e em particular naqueles que mais mudanças sofreram nas suas bases de funcionamento nos últimos anos, como é o caso dos dois em que se cruza o funcionamento de uma revista de metal – a imprensa escrita e a indústria discográfica. Não lhes vaticino uma morte definitiva, no entanto. Especialmente neste nosso nicho, creio que haverá sempre espaço para uma publicação física, como haverá sempre espaço para edições físicas dos discos de que todos gostamos. É preciso saber evoluir e acompanhar as mudanças, diversificar as formas de oferta, refinar os conteúdos e as ideias para que as pessoas não caiam no fácil (e erróneo, tantas vezes) “ah, isso leio tudo na net”. Mas também é preciso ser teimoso e acreditar que ninguém quer mesmo um mundo em que todas as revistas estão no tablet e todos os discos no leitor de .mp3. 

Consideras que também ao nível da imprensa escrita a internet veio alterar por completo as regras do jogo? Em que sentido? 
Veio, tanto directamente como indirectamente. 
Directamente, porque a oferta de leitura é quase infinitamente maior ao que costumava ser, e sem filtro nenhum. O que há mais é “revistas” manhosas na net, e algumas muito boas também, já para não falar da imensidão de blogues, desde o mais genial até ao mais embaraçoso. Isso é bom e é mau: bom, porque obriga as revistas a elevarem os seus standards, a mostrarem que continua a valer a pena comprar o papel, a tornarem-se quase em coleccionáveis, porque ao mínimo desleixo, as pessoas abrem uma página na net e borrifam-se para o trabalho e custo que dá para obter a revista. Mau, porque muita gente não adoptou a saudável convivência entre os dois veículos diferentes de informação e simplesmente deixou de sequer dar uma hipótese ao formato físico. 
Indirectamente, porque as mudanças estrondosas que a internet causou na indústria discográfica afectaram obviamente as publicações desse mundo. Não se vendem discos, as editoras têm menos recursos para investir em publicidade e outras iniciativas, as bandas sofrem, as revistas sofrem. As ramificações são muito mais complexas que isto, mas a ideia base da coisa é essa. Para além disso, o acesso imediato a todos os discos também mudou muito a percepção que os leitores têm sobre as revistas. É uma generalização, mas que se verifica com frequência: antigamente, a maior parte de nós usava as revistas de música como um guia, era um dos principais veículos, se não mesmo o principal, para descobrirmos bandas novas e para tomarmos decisões em relação aos discos que íamos comprar. A credibilidade das pessoas que escreviam nas revistas era geralmente aceite. Agora, como já toda a gente tem todos os discos que vêm criticados nas revistas, e como é muito mais fácil descobrir as coisas por si próprio (e porque não há o peso de ter que ir comprar os discos para os ouvir), a posição mudou para “deixa cá ver se este gajo acha o mesmo que eu já acho deste disco”. E é fácil dizer que o gajo que escreve é uma besta porque não gostou do mesmo disco que eu, porque eu agora já tenho todos os discos e já tenho opinião formada sobre eles antes de sair a revista. E se não o ouvi, vou aqui sacá-lo e daqui a 10 minutos já vejo se o gajo é uma besta ou não. Não defendo que as revistas tenham que ser um oráculo que contem toda a sabedoria e que guia as massas desmioladas, nada disso. Mas que se perdeu uma grande dose da confiança que era à partida adquirida nesta relação escritor-leitor, lá isso perdeu-se. É uma relação muito mais confrontacional, agora.


com Jonathan Selzer (Terrorizer Mag)

Derivado do teu trabalho para revistas internacionais, fazes a cobertura de eventos por essa Europa fora com alguma frequência. Que realidades tens encontrado quando comparadas com a portuguesa, principalmente ao nível do apoio e condições dadas às bandas e à divulgação musical? 
Em termos governamentais, a diferença é abissal na maior parte dos países quando comparados com o nosso. Até me sinto mal de pensar nisso, por isso não vou desenvolver muito, mas fica um exemplo paradigmático: na Islândia, um dos tais países que sofreu mais com a crise económica e cuja cena musical tenho tido a oportunidade de conhecer com alguma profundidade nos últimos anos, existe uma organização apoiada pelo governo chamada Iceland Music Export (IMX) cujo único propósito é o de dar a conhecer a música islandesa internacionalmente. Basta ler o manifesto para chorar de inveja de não haver uma Portugal Music Export: http://www.icelandmusic.is/about/imx/. E desengane-se quem pensa que isso só serve para as Björks, Sugarcubes e Sigur Rós deste mundo. Putos novos e talentosos do metal extremo como os Angist, os Gone Postal ou os The Vintage Caravan beneficiam destas iniciativas, por exemplo, tendo voos grátis para vários pontos da Europa para irem tocar a festivais e fazerem pequenas digressões, ou tendo jornalistas convidados de vários media e editoras do estrangeiro a assistirem às suas actuações locais e aos festivais islandeses onde participam. Com resultados – por exemplo, uma das bandas que participou no último festival Eistnaflug acabou de assinar um contrato com uma grande editora europeia. Isto tudo num país supostamente em crise e com um isolamento geográfico 50 vezes pior do que aquele de que tanto nos queixamos em Portugal. 

Da tua experiência além fronteiras, somos realmente um público excepcional ou isso não passa de conversa de músico e de respostas de palmatória? 
Somos, de facto, muito calorosos, mas confesso que não noto grandes diferenças de nacionalidades em bons concertos, sejam eles onde forem. Nunca fui a sítios onde o público parece de facto ser totalmente diferente do que estamos habituados, como o Japão, ou até países menos “habituais” na rota das bandas e portanto com públicos mais amalucados como alguns da América do Sul... mas daquilo que conheço, e por azeiteiro que isto possa soar, a nossa nacionalidade excepcional é o próprio metal, e é essa “bandeira” que faz de nós excepcionais. Seja na Alemanha, na Finlândia ou em Portugal.

com Wino e The Obsessed

Enquanto crítico musical, sentes a responsabilidade e a influência que as tuas palavras poderão ter na decisão de um leitor comprar ou não um disco? Sentes que tens o poder de influenciar as escolhas? Como lidas com isso? 
Como expliquei ali num testamento com que respondi a uma das perguntas anteriores, não acho que hoje em dia (infelizmente) as críticas musicais ainda tenham grande influência na decisão de comprar, propriamente dita. Podemos, isso sim, encaminhar as pessoas para uma nova banda ou algum tesourinho perdido do passado, o que poderá eventualmente levar a uma compra, se o leitor em questão se tratar de um dos três ou quatro gajos no mundo que ainda compram discos. Mas independentemente disso, sim, continuo a forçar-me a ter o peso dessa responsabilidade quando escrevo. Quer ela exista na realidade ou não. É uma questão de princípio, de levar a sério o que faço. Lido bem com isso, sempre lidei. Não sou infalível, faço e escrevo asneiras como toda a gente, mas tenho uma confiança saudável no que faço. 

Já alguma vez lidaste com situações de leitores que se sentiram defraudados por seguirem aquilo que mencionavas numa crítica? 
Sim, em ambos os sentidos – ou não gostaram de algo que recomendei, ou gostam muito de algo que recomendei negativamente, digamos assim. Muito frequentemente. Alguns deles manifestam-se respeitosamente, são capazes de perceber que, mesmo mantendo o tal equilíbrio razão/coração de que falei há pouco, é possível (e saudável!) haver perspectivas diferentes sobre música. Que isto de falar sobre discos não é uma actividade exacta, objectiva e matemática. Que há gente que gosta do ‘Cold Lake’ [NR: polémico álbum editado pelos Celtic Frost em 1988], e ainda bem! Outros, a maior parte, infelizmente, nem por isso. Recebo hate mail com fartura. De fãs das bandas, e das próprias bandas. Já me prometeram facadas, já me apelidaram de “mouco” e de variadíssimos outros epítetos. O mais comum é mesmo sectorizarem-me para conseguirem justificar a minha opinião sem admitirem que é possível existir alguém no mundo que acha que aquele disco em especial não é a última coca-cola do deserto – se eu não gostei de um disco de heavy metal, é porque sou com certeza um gajo que só ouve hardcore. Se eu não gostei de um disco de folk, é porque obviamente só gosto de black metal, e não percebi o que ouvi. Há muito a tendência de as pessoas encararem as bandas que gostam como se fosse um clube de futebol. Já me aconteceu dizer coisas menos boas acerca de discos fraquinhos de bandas que otherwise gosto imenso, e a conclusão imediata das pessoas é que eu odeio aquela banda. Não lhes cabe na cabeça que é possível ter algum critério mesmo com as bandas de que se é fã. 
Enfim, por aí fora. Mas não me estou a queixar, note-se. Nunca afino com nada disto. Faz tudo parte, até encaro tudo com algum bom humor. Quem tem qualquer tipo de actividade “pública” tem que estar preparado para isso. Além disso, é bom sinal. É sinal que as pessoas têm paixão pela música e até estão preparadas para insultar um gajo qualquer que não conhecem só porque ele se está a “meter” com as bandas de que gostam. Fossemos nós assim em todos os sectores da sociedade como somos com a bola e com a música.

Ao longo de todos estes anos enquanto jornalista deves ter algumas memórias curiosas para partilhar. Das quais nunca mais irás esquecer-te pelo carácter insólito da coisa? 
Acho que já mencionei parte dessas historietas lá atrás, mas lembro-me de duas específicas que aconteceram, relacionadas com entrevistas propriamente ditas – uma delas, uma conversa no Skype com o Steve Von Till, para um artigo aqui há uns tempos sobre os Neurosis. Maravilhosa, como é habitual com o senhor, uma hora e tal de paleio. O software de gravação que utilizava para gravar as chamadas pelo Skype nunca me deu problemas nenhuns. Quando fui abrir o ficheiro para transcrever a entrevista... 0kb. Não tinha gravado coisa nenhuma. Pânico total. Enviei um email ao Steve a explicar o que tinha acontecido, e ele acedeu a responder a uma série semelhante de perguntas por email, numa espécie de resumo escrito do que tínhamos conversado horas antes. Um cavalheiro absoluto. Outra ocasião embaraçosa – uma entrevista com o ex-Sentenced Sami Lopakka, agora guitarrista dos KYPCK, quando saiu o primeiro álbum dessa banda nova. Esqueci-me completamente. Liga-me ele, estou eu descontraídamente às compras no Colombo. Fiz a entrevista no parque de estacionamento, sem gravador, ia escrevendo freneticamente tudo o que ele me dizia. Podia ter adiado? Podia. Mas fiquei demasiado envergonhado para admitir que me tinha esquecido da entrevista e decidi improvisar. Safei-me. 

com Mike Hill (Tombs)

Ao longo do teu percurso enquanto jornalista musical, já entrevistaste centenas de músicos. Consegues eleger as melhores conversas, as piores conversas e as mais insólitas? 
As melhores são muitas, porque há muita gente interessante neste meio – o Justin Broadrick (Godflesh/etc, com quem voltei a falar há uns dias e apesar de estar afónico e com gripe não resistiu a estender a conversa por hora e meia!), o Scott Kelly e o Steve Von Till (Neurosis), o Wino (que tem sempre histórias novas e hilariantes), o Mike Hill (Tombs) ou o Marco Serrato (Orthodox) são alguns dos que saltam logo à ideia, mas também o Garm (Ulver), o Ihsahn, os Darkthrone, a Diamanda Galás, o John Garcia (Kyuss), a Jarboe (Swans), o Aaron Stainthorpe (My Dying Bride), o Peter Dolving (The Haunted), o Efthimis Karadimas (Nightfall), o Aaron Weaver (Wolves In The Throne Room), o Erik Ripley (Wooden Shjips) ou o Max Cavalera, são todos pessoas fascinantes com muita coisa relevante para dizer, e com quem passei largas horas ao telefone ou em pessoa em algo que já transcendia o acto da entrevista – já era mesmo uma conversa animada de ambas as partes, com todos eles, e com muitos outros. Até com o Danzig, apesar da má fama do homem, tive uma conversa fantástica, muito boa onda – a certa altura da conversa apareceu o gajo da editora a dizer que não tínhamos mais tempo, e o bom do Danzig mandou-o passear e disse-me para eu demorar o tempo que quisesse. 
As piores, felizmente, são muito raras, e são quase todas circunstanciais. É muito raro encontrar verdadeiros assholes. As más experiências que tive, consigo compreendê-las perfeitamente e não mantenho qualquer rancor com as pessoas em questão. Todos temos dias maus. O Al Cisneros (Sleep, OM), por exemplo, tem a particularidade de entrar nas duas listas, das melhores e das piores – de uma das vezes que o entrevistei por telefone, estava a meio de uma tour, não estava nitidamente com vontade nenhuma de falar com ninguém, foi bruto e mal educado, e só no fim quando percebeu que a entrevista era para a Terrorizer (e não para “essa tua revista”, como lhe chamou várias vezes durante a conversa) é que lá amansou e pediu desculpas, e explicou que estava muito cansado e tinha dormido pouco e por aí fora. Há que compreender, até porque da segunda vez que o entrevistei, já estava o homem sossegado em casa e nitidamente a fumar qualquer coisa que o relaxou muito, e foi uma das entrevistas mais delirantemente boas que já fiz, e das mais longas também – foram quase 2 horas de conversa sobre os mais variados assuntos. Nem é preciso sair dos Sleep para ir ter à pior de todas: o Matt Pike, para o que seria supostamente uma entrevista sobre a reedição do ‘Dopesmoker’. Após vários dias de várias tentativas, e de desespero constante tanto meu como do pobre tour manager que tão boa vontade mostrou (era o vocalista/guitarrista dos magníficos Totimoshi, o Tony Aguilar), lá conseguiram enfiar o telefone na mão do Pike, que quando descobriu que o meu nome era José, a única coisa que me conseguiu dizer foi um embriagado “so how’s the weather down there in Mexico?” antes de uma sonora gargalhada e de desligar o telefone. Dias depois, foi para rehab, o que faz sentido, não sem antes o pobre do Tony Aguilar (ele que é de origem mexicana...) se ter desfeito em desculpas. Há dias assim.

com Orthodox

Qual aquele músico que adorarias entrevistar? 
Não tenho nenhum desejo específico, muito sinceramente. Às vezes as entrevistas mais brilhantes vêm de onde menos se espera, por isso aguardo sempre com expectativa as conversas, sejam elas com quem forem. Olha, gostava de falar com o Pike outra vez, para ele se redimir como fez o Cisneros.

Estando ligado à imprensa escrita há tantos anos, deduzo que desde cedo começaste a ter acesso facilitado a inúmeros discos e material promocional. De que forma isso educou o teu ouvido, estando exposto a tantas sonoridades? É fácil digerir tanta música nova? 
Sempre tive um caracter irrequieto, na busca incessante por nova música. Todos os dias quero descobrir bandas novas, ao mesmo tempo que mantenho o contacto com as que já gosto. Por isso, desde que comecei a receber mais música ainda, por motivos profissionais, confesso que não veio mudar muito a minha postura – só me veio alargar ainda mais os horizontes que já forço a que sejam largos por definição. E veio tornar um bocadinho mais difícil a separação entre trigo e joio, mas isso é um bom problema. 

Com esse acesso facilitado a tantos discos de forma gratuita, certamente será difícil explicar aos que nos rodeiam o porquê de continuar a gastar dinheiro em discos… 
Nem acho que valha a pena, honestamente. Sem me querer estar a armar em superior só porque cresci com uma cultura diferente da actual nesse aspecto, a verdade é que quem gosta de música a sério, percebe esse porquê. Até mesmo que não o faça, que não compre discos porque efectivamente não pode e não tem dinheiro para isso. Mas percebe. Quem não percebe... não é bem um fã de música propriamente dito, pois não? 

Os formatos promocionais que chegavam à imprensa estão hoje substituídos por um link de um ficheiro para download, pelo menos na imprensa escrita. Como encaras essa posição das editoras? 
Como uma necessidade financeira. Compreendo, apesar de lamentar. Tem um lado bom, no entanto – como praticamente já não há promos físicas (algumas editoras resistem estoicamente... abençoada Profound Lore, por exemplo), os poucos discos que ainda vamos recebendo acabam por ser edições finais. E, sinceramente, prefiro 5 discos “a sério” do que 20 promos em cartão.

Há quem defenda que dentro de um jornalista/crítico musical reside um músico frustrado. Concordas? 
Não é o meu caso, como não é o de muita gente que conheço, mas acredito que haja exemplos que corroborem essa teoria. Mas não é, de todo, aplicável universalmente. Além disso, há ainda quem conjugue as duas actividades muito bem.

 Há igualmente quem defenda que para se ser crítico musical deverá perceber-se de música, saber tocar instrumentos e estar por dentro de técnicas de gravação, captação de som, produção e afins. O que te apraz dizer sobre isso? 
Compreendo essa argumentação, mas acho que às vezes é levada longe demais. Obviamente que para ter uma opinião completa sobre a música que criticamos convém ter uma noção básica que seja sobre as várias etapas de gravação de um disco e sobre as possibilidades dos instrumentos. Tal como convém ter passado uma quantidade estúpida de horas da sua vida a ouvir música boa e variada. Mas daí a dizer que tem que ser músico, vai alguma distância. Seria o mesmo que exigir a um jornalista desportivo que jogasse como o Cristiano Ronaldo ou a um crítico de cinema que fosse capaz de substituir o Quentin Tarantino no próximo filme. Cada um tem o seu papel, e se for desempenhado com profissionalismo e com competência há espaço para todos. Normalmente a origem desses argumentos extremados vem de bandas que recebem más críticas e que, em vez de saberem extrair algo positivo (que nem sempre há, admita-se – nem toda a gente que escreve sobre música o faz bem, também), refugiam-se no facilitismo do “então vem cá tu fazer melhor, se conseguires”.

com Scott Kelly (Neurosis) 

Sei que actualmente vives exclusivamente da tua actividade enquanto jornalista e repórter fotográfico na área da música. Deduzo que seja um objectivo há muito perseguido e que te encha de satisfação uma vez alcançado? Que conselhos dás a quem ambicione algo semelhante? 
Que desista imediatamente, a menos que não goste particularmente de dinheiro (risos). Agora a sério, sim, tenho a satisfação de fazer o que gosto. A carreira que mantive em paralelo com esta actividade durante mais de 10 anos era muito mais lucrativa em termos financeiros, mas decidi que prefiro ter outro tipo de níveis cheios na minha vida do que propriamente o nível da minha conta bancária. São opções que dependem do feitio e das prioridades de cada um, e por isso não posso dar conselhos universais. Acredito firmemente que quem quer alguma coisa com força suficiente, acaba por fazê-la, dê lá por onde der. É o máximo que posso dizer. 

Tenta definir o que te vai na alma por escrito sobre esta nossa paixão? 
Essa definição é contínua e constante. Tento cuspir os conteúdos da minha alma, por escrito, cá para fora para todos os verem, todos os meses, todas as semanas, todos os dias – na LOUD!, na Terrorizer, na Rock-a-Rolla, no The long way home. (onewinteronly.blogspot.com), e em tascos com o mau gosto suficiente para me admitirem como convidado, como o Opuskulo. Vou continuar a fazê-lo, e espero que gostem.

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