A relação dos Mão Morta à componente teatral não é propriamente novidade, basta recordar o espectáculo "Müller no Hotel Hessischer Hof" que teve como protagonista Adolfo Luxúria Canibal e seus pares e que ficou imortalizado num DVD editado recentemente. "Os Cantos de Maldoror" recuperam esse formato e lançam os Mão Morta numa nova aventura que promete tornar-se num espectáculo singular a não perder. Em vésperas de estrear a nível nacional, o Opuskulo teve o prazer de conversar com o enigmático e incontornável figura desta trama, Adolfo Luxúria Canibal...
Para quem não está familiarizado com a obra que deu origem a este espectáculo, «Os Cantos de Maldoror», é possível fazer um breve resumo da mesma?
Não. Poderia dizer que é construída como uma epopeia clássica mas em que, contrariamente a esta, o herói não é um herói do bem mas um herói do mal – e não seria mentira –, mas isso era deixar o essencial do livro de fora. Porque o que o torna interessante não é propriamente a história que conta – e não conta uma história, antes se perde por milhentos farrapos de histórias – nem a forma genérica que aparenta, mas a maneira como a escrita se desenrola. Não estamos a falar de um romance ou de uma novela, mas de poesia e de poesia moderna – e é insensato imaginar que se possa resumir um poema sem, com isso, perder o poema!
Como surgiu a ideia de passar essa obra para este formato original? Porquê esta obra?
O livro Os Cantos de Maldoror é uma obra já várias vezes referenciada por nós e que nos ocupa a cabeceira da cama desde a adolescência. Tendo a literatura tanta importância no trabalho dos Mão Morta, quer a nível temático quer como inspiração para a composição, quer como objecto de trabalho, seria previsível que um livro que nos é tão querido viesse, mais cedo ou mais tarde, a ser abordado pelo nosso labor criativo. E efectivamente há muito tempo que o Miguel Pedro insistia em fazermos um espectáculo sobre Os Cantos de Maldoror, ideia que eu ia sistematicamente recusando por me parecer que a complexidade da obra, e o nível estritamente literário em que ela opera, não seria susceptível de transposição para outro tipo de linguagem. Mas o Miguel Pedro tanto insistiu que lá nos conseguiu convencer a todos a metermo-nos nessa loucura e o convite do Theatro Circo, para inaugurarmos a sua vertente de produção de espectáculos, acabou por surgir no momento certo para dar viabilidade ao projecto… As dificuldades de transposição que eu temia aconteceram, mas não nos fizeram desistir e acabamos por encontrar um mecanismo que nos possibilitou a construção de um espectáculo que, acreditamos, não atraiçoa o livro.
Esta simbiose entre a música, o vídeo e a declamação não deixa de ser original, especialmente em Portugal. Sentem-se de alguma forma percursores de algo?
Não tenho assim tanta certeza que seja algo tão original quanto isso! Seja como for, importa dizer que não fizemos qualquer levantamento de quem antes de nós já tinha utilizado a multidisciplinaridade de linguagens e de mídias, mas acreditamos piamente que já muita gente o fez… E isso para nós não é importante! Essa utilização acontece no Maldoror não pela vontade em ser percursor ou para ostentar meios, mas porque achamos que a construção do espectáculo o exigia – espelha, de certo modo, as diferentes vozes que no livro se entrecruzam.
Achas que o público português está preparado para acolher um espectáculo deste género? Que expectativas têm quanto aos espectáculos que ai vêm?
Esse conceito de público parece-nos um conceito demasiado abstracto… Nós partimos para a feitura de um espectáculo (ou de um disco) por necessidade nossa, pelo prazer criativo de mergulharmos numa coisa nova e de partilharmos a sua construção entre todos, e um bom resultado final, um resultado que nos satisfaça e com o qual nos sintamos recompensados, faz parte dessa alegria criativa. Se esse resultado final nos agradar, não há motivo para não poder agradar também às pessoas que forem ver o espectáculo – não há necessidade objectiva de haver uma qualquer preparação especial para isso acontecer – e se efectivamente agradar então a nossa felicidade torna-se perfeita!... Neste momento, que ainda não temos um resultado final, estamos amplamente satisfeitos com o trabalho realizado e cheios de expectativas positivas!
A componente cénica e dramática esteve sempre bastante presente na música de Mão Morta. Esta foi uma forma de materializarem essa mesma componente?
Efectivamente sempre houve uma componente cénica muito acentuada em toda a música dos Mão Morta, quer em espectáculo quer em disco, que deriva essencialmente da intensidade interpretativa. Neste Maldoror, como já tinha acontecido no Müller no Hotel Hessischer Hof, fazemos a exploração plástica, submetendo toda a apresentação em palco a um trabalho mais apurado, dessa componente cénica preexistente na interpretação. E com isso criamos um híbrido, que ainda não é teatro mas que já não é só música…
Em traços gerais, o que podemos esperar deste espectáculo? Qual a mensagem que no final pretendem transmitir ao público?
Não pretendemos transmitir qualquer mensagem… Damo-nos por muito satisfeitos se aqueles que conhecem e gostam dos Cantos de Maldoror, ao verem o espectáculo, se tenham sentido transportados sensorialmente para o interior do livro e que os que não o conhecem saiam do espectáculo com a curiosidade desperta e tentados a conhecê-lo.
Inicialmente limitado a poucas datas, encaram a hipótese de estender este espectáculo por um maior número de salas e localidades?
Sim, a ideia é fazer uma itinerância e levar o espectáculo a todo o lado que disponha de uma sala com capacidade técnica para o receber. Já há vários contactos nesse sentido, mas por agora as únicas datas firmes são as de Braga, a 11 e 12 de Maio, e a de Portalegre, a 19 de Maio.
Podemos esperar futuras participações dos Mão Morta neste tipo de espectáculos ou é uma experiência isolada?
Não é uma experiência isolada, até porque já não é a primeira – há dez anos aconteceu outro espectáculo similar que foi o Müller no Hotel Hessischer Hof. Mas pela sua própria natureza, pelos meios que implica, pelo tempo que necessita e pela entrega a que obriga, este tipo de espectáculos só pode ter um carácter esporádico.
Quanto à banda propriamente dita, há já algum novo disco a ser preparado? O que podes adiantar?
O nosso novo disco de originais será este espectáculo, no qual estamos a trabalhar exaustivamente há ano e meio. As apresentações no Theatro Circo vão ser gravadas e filmadas para depois ser feita uma edição em CD e DVD, à imagem do que aconteceu com o Müller no Hotel Hessischer Hof.
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